Atualmente, milhões de pessoas no planeta comemoram a semana “Laudato sì”, uma iniciativa que busca aplicar ativamente as propostas que o Papa Francisco apresentou à humanidade há cinco anos, quando publicou sua encíclica de mesmo nome dedicada ao cuidado da criação através de uma ecologia integral.

Nesta entrevista, o cardeal Michael Czerny SJ, subsecretário da Seção de Migrantes e Refugiados, uma instituição criada pelo Papa Francisco no Vaticano e que ele dirige pessoalmente, explica como este documento pode constituir uma bússola para a reconstrução da sociedade, após o flagelo da pandemia causada pelo coronavírus.

– Estamos comemorando o quinto aniversário da publicação da encíclica “Laudato sì”. Que lições este documento traz para a atual situação?

– Cardeal Michael Czerny: Cinco anos atrás, Laudato sì revelou as falhas tectônicas da injustiça humana e da degradação ambiental. Agora, o novo coronavírus (Covid-19) as está amplificando e ampliando, de forma trágica e aguda. É a “aceleração” que o Papa Francisco identificou no número 18 da encíclica. Não apenas pela maneira e velocidade com que o vírus se espalha, mas também pela alta aceleração da digitalização, os milhões de empregos perdidos, a comunicação online que substituiu reuniões e eventos.

É interessante observar os paralelos entre a crise ecológica e a crise do coronavírus: a Covid-19 começa prejudicando a saúde, mas também tem outras consequências terríveis, especialmente entre os mais vulneráveis. Algo semelhante acontece com a crise ecológica: começa danificando o meio ambiente, mas depois tem consequências devastadoras para o trabalho, alimentação, saúde e outras questões sociais, principalmente para os mais pobres. Ambas as crises exigem novas soluções em todos os lugares e em todos os níveis, não apenas no topo.

– A “Laudato sì” tem cinco anos. Não foi a primeira vez que a Igreja falou sobre ecologia, mas graças a este documento, um novo paradigma de ecologia integral foi estabelecido, com impacto na linguagem eclesial e comum. Que “processos” essa encíclica desencadeou nos últimos anos, usando um termo típico do Papa Francisco?

– Cardeal Michael Czerny: Assim que foi publicada, a “Laudato sì” preparou o terreno, incentivou e guiou a Conferência COP21 em Paris (dezembro de 2015), que deu origem ao Acordo de Paris. Embora esse acordo tenha sido frágil, foi um primeiro passo necessário. Mas, acima de tudo, estimulou inúmeras formas de mobilização nas paróquias, em outras religiões, em grupos e movimentos leigos. Foi algo realmente inédito, no caso de uma encíclica.

– Como podemos reler o “Laudato sì” à luz dos eventos que estamos enfrentando hoje? Como podemos fazer esta semana dar frutos?

– Cardeal Michael Czerny: É legítimo interpretar a “Laudato sì” à luz da Covid-19. Os abusos e a degradação ambiental provavelmente contribuíram para o surgimento e a disseminação do vírus; Agora, nossa análise deve ir muito mais a fundo, aos valores fundamentais que levaram à competitividade e ao consumismo próprios da civilização de ontem. O novo mundo, depois da Covid-19, tem de ser um mundo muito melhor.

– E ainda hoje, alguns católicos acham difícil considerar as questões socioambientais como um elemento fundamental de sua fé. O que o senhor diria a eles.

– Cardeal Michael Czerny: Em vez de ser uma “questão socioambiental”, a criação constitui um artigo fundamental de fé: “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, criador do céu e da terra”.

A vida humana é baseada em três relacionamentos fundamentais e interconectados: com Deus, com o próximo e com a terra, que faz parte da criação amorosa de Deus. Distorcer qualquer um desses relacionamentos constitui um pecado. O perdão consiste em buscar a participação na redenção que Cristo nos traz, a cura das relações rompidas e a restauração da harmonia nessas três dimensões.

São João Paulo II lembra a cada um, especialmente aos cristãos, “que seu papel na criação, bem como seus deveres com a natureza e o Criador, fazem parte de sua fé” (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1990). Portanto, caminhemos juntos com os católicos que você mencionou e, juntos, enfrentemos nossa falta de fé, nosso medo.

– “Querida Amazônia” e todo o processo do Sínodo dedicado a essa região do mundo são frutos do “Laudato sì”. Como “Querida Amazônia” segue o caminho da “Laudato sì” e desafia todos nós, não apenas as pessoas que vivem na Amazônia?

– Cardeal Michael Czerny: O Sínodo mostrou o que significa levar a “Laudato sì” a sério, para enfrentar todos os pecados sociais e ecológicos de uma determinada região. Essa é a lição a ser aplicada em qualquer lugar da Terra.

Por outro lado, “Querida Amazônia” reconhece claramente os povos da Amazônia, particularmente os indígenas, como os primeiros e indispensáveis protagonistas da preservação do papel planetário desempenhado pela Amazônia. É um desafio para todos aqueles que continuam a promover, ainda que inconscientemente, atitudes colonialistas em relação a outras culturas ou consideram que podem fazer o que quiserem com todos os recursos naturais.

– Como a “Laudato sì” nos ajuda na reconstrução após a pandemia?

– Cardeal Michael Czerny: Antes de tudo, devemos deixar claro que nosso objetivo não pode ser retornar à mesma situação de antes: devemos converter comportamentos autodestrutivos, desumanos, injustos e insustentáveis que foram considerados “normais” até o início do ano 2020.

O Papa nos convida a criar novas relações, uma nova economia, uma nova sociedade. A “Laudato sì” constitui um desafio contra os vetores de crescimento prejudicial e destrutivo, propondo um desenvolvimento inclusivo e sustentável, ao qual podemos atribuir o nome de “integral”.

No que diz respeito à maneira pela qual podemos conseguir isso, a “Laudato sì” prestou enorme atenção ao diálogo como uma base totalmente necessária para uma ação positiva. A única atitude possível para promover a regeneração após a pandemia é o diálogo, o que significa honestamente envolver todos os afetados. Este é o caminho sinodal.

– Os jovens são talvez os mais afetados pela crise ambiental. O senhor acha que a ecologia integral pode se tornar uma ponte para se comunicar com eles, que acham mais difícil integrar-se à vida paroquial tradicional e às estruturas eclesiais?

– Cardeal Michael Czerny: Os jovens estão absolutamente certos quando se sentem profundamente indignados com a flagrante irresponsabilidade de todos os “responsáveis”. Não se trata apenas de líderes com capacidade de tomar decisões em questões como comércio e política, mas também de consumidores e cidadãos que vivem um estilo de vida baseado no abuso insustentável de pessoas e do planeta.

Os jovens de hoje veem o planeta como seu local essencial de respeito e preocupação. Quando os movimentos cristãos os acompanham em sua busca, os jovens participam e desempenham papéis de liderança. Foi isso que aprendemos no Sínodo sobre os jovens de 2018.

– A crise ambiental continua piorando a cada dia. Pelo menos, podemos dizer que é mais grave do que há cinco anos. Quais são os compromissos que os cristãos devem assumir na ocasião desta semana [de celebrações do aniversário da “Laudato sì”]?

– Cardeal Michael Czerny: Antes de tudo, cada um, tanto cristãos como outros, poderia tentar melhorar seu relacionamento com a natureza através do caminho da contemplação. Não podemos amar o que nem sequer vemos. A contemplação pode evocar o caminho da conversão ecológica.

Durante essa pandemia de coronavírus, muitos estão descobrindo que podemos viver com menos. Podemos consumir menos, escolher produtos menos poluentes e evitar embalagens que não possam ser recicladas. Em vez de comprar sem levar em conta as consequências morais e ambientais, nossas paróquias, escolas e centros católicos podem assumir que “a compra é sempre um ato moral, e não apenas econômico” (“Laudato sì”, n. 206, citando a “Caritas in Veritate”). Eles podem usar garrafas de vidro e pratos laváveis, como muitos centros e movimentos populares fazem hoje.

Finalmente, em nossa liturgia, comprometemo-nos a celebrar o dom da criação de Deus de uma maneira mais inspiradora. Nossas liturgias tradicionais incluem elementos da natureza: água e óleo no batismo, pão e vinho na Eucaristia, fogo na Vigília Pascal… Precisamos experimentar a natureza de maneira espiritual e a criação de maneira integral. Caso contrário, continuaremos a explorar, consumir e abusar da natureza, em vez de aceitar nossa responsabilidade como criadores com Deus de nosso lar comum. As dimensões sóbrias, litúrgicas e contemplativas da espiritualidade cristã ajudarão a motivar as mudanças necessárias em nível pessoal e social: todas elas radicais.

– Você poderia mencionar iniciativas que surgiram inspiradas de uma maneira particular pela encíclica “Laudato sì”?

– Cardeal Michael Czerny: O Movimento Mundial Católico pelo Clima (Catholicclimatemovement.global), que também está comemorando seu quinto aniversário, possui mais de 900 organizações como membros, que vão desde redes internacionais a paróquias locais, congregações religiosas, líderes comunitários e milhares de homens e mulheres católicos e jovens. Este movimento ajudou a organizar esta maravilhosa semana especial da “Laudato sì” (Laudatosiweek.org), que estamos vivendo agora.

Outros exemplos incluem agricultores orgânicos na América Latina, prédios ecologicamente restaurados na Europa, energia solar instalada na África. Um bom número de escolas católicas adotou o “Laudato sì” como seu ensinamento interdisciplinar fundamental para promover a responsabilidade ecológica e mobilizar os estudantes e suas famílias nos cuidados de nosso lar comum.

(Publicado originalmente por Avvenire)

Fonte(s): Avvenire | Aleteia